terça-feira, 11 de maio de 2010

O Luto


Aula Magna, sexta-feira, dia 7 de Maio. Entra em palco um homem já entradote, barriguinha à Benfica, óculos numa mão, cabelos brancos, um papel na outra. E diz: "não sei se leram - vejo que não - o papel à entrada. Mas Rufus Wainwright pede que por favor não aplaudam nem na sua entrada, nem durante o espectáculo, nem na sua saída - que também faz parte do espectáculo. Na tela será reproduzido um video de não sei quem (ele disse o nome, claro, eu é que não sei quem). Na segunda parte podem deitar a Aula Magna abaixo com aplausos."
E Rufus entrou. Com um vestido preto, meias de licra pretas, uma cauda que ficava estendida por todo o palco. No peito, aberto, folhos e folhos negros. Entrou em câmara lenta, pé ante pé. Sentou-se. E tocou o álbum novo, do início ao fim. Sem uma única falha, sem sequer saber que o estavam a ouvir e ver. Na tela um olho pintado de negro, muito negro, muito grande, abria e fechava e chorava. Depois mais olhos, negros, sempre negros, abriam, fechavam, choravam. Terminou. Saiu como entrou: pé ante pé, "devagar, devagarinho como a tua voz a adormecer o teu menino".
As palmas, finalmente.
As luzes acenderam para o intervalo. E eu disse: é um concerto sobre o luto. Ele está todo fodido com a morte da mãe. Já tínhamos reparado que não havia nenhuma referência à mãe no novo álbum, que ouvimos pouco. Mas ela está em todo ele. Nas músicas ao piano e à voz, barrocas. Há sempre vozes e vozes. Há uma voz numa mão do piano. Há outra voz noutra mão do piano. Há vozes que entram a meio destas, nas duas mãos. E depois há a voz que canta ainda outra coisa. Não são músicas fáceis, RFM, que entram no ouvido à primeira; nem à segunda; nem à terceira. Mas são geniais, percebi quando o ouvi tocar. E disse: que será a segunda parte? O Rufus que nós conhecemos a brincar sempre com o público?
Foi. Veio com lantejoulas e disse logo a abrir: "aqui estou eu, em mais uma desculpa para vestir collants". Tocou todas as músicas que eu queria, brincou com o Papa omnipresente em Lisboa, e com mais coisas ainda. Tocou "Poses", "Dinner at Eight", "Vibrate". Chegou-me.
Mas no fim, já todos contentes, disse: "agora quero falar da minha mãe". Disse que há uns dois anos, num dia solar, visitou um sítio de que não sabe o nome (era Belém, nós gritámos todos mas ele não queria saber, era só, como sempre, estilo), onde estava uma torre e uns homens a andar para o céu num padrão dito dos descobrimentos. E que com ela viu no chão o mundo inteiro. E que hoje, sexta-feira, foi lá sozinho e estava um dia muito escuro. E que a mãe já tinha navegado como os navegadores para outro sítio melhor. E disse: vou tocar esta música dela, que redescobri quando, com a minha irmã, comecei a encontrá-la em discos antigos. E tocou. Imagino-a muito fraca, folk de trazer por casa nos anos setenta. Mas os arranjos disseram que não, que era uma grande música. E foi.
Disse: ele está todo fodido com a morte da mãe. A segunda parte do concerto foi uma mentira. Ele dizia piadas mas chorava. E acabou o concerto como começou - e como tocou: em luto.