quinta-feira, 13 de maio de 2010

Flamingo


Li em rodapé, na SIC Notícias: encontrou-se o primeiro ninho de flamingos em Portugal. Confesso a minha ignorância: há flamingos em Portugal que nidifiquem? Onde, que eu não sei? Enfim, googlarei...

Mas lembrei-me logo de Stephen Jay Gould. Do seu "Flamingo's Smile" ou "O Sorriso do Flamingo", editado no final dos anos 80 na Gradiva. É lá que ele, por causa do sorriso invertido do flamingo, fala como sempre falou de Evolução. Mas é também lá que ele tenta mudar o nome de Némesis, a estrela companheira do Sol. Eu explico, sucintamente:

Os Alvarez, pai e filho (o primeiro, Walter, Nobel da Física) descobriram o que matou os dinossauros há 65 milhões de anos - um cometa que caiu onde é agora o Golfo do México. Foi a partir do irídio, nas rochas. Se quiserem saber, é só comprar "T-Rex - a Cratera da Destruição", editado pelo Luís Alves na Bizâncio.

Raup e Sepkoski a partir dessa descoberta fizeram uma análise estatística das extinções em massa na História da Terra. E perceberam que havia um padrão: a cada 26 milhões de anos ocorria um pico.

Mandaram o paper para Alvarez. Que não lhe ligou nenhuma. Mas um investigador da sua equipa, Richard Muller, ligou. E pensou o que raio poderia criar um ciclo de extinções com 26 milhões de anos. Postulou Némesis, uma estrela companheira do Sol que de 26 em 26 milhões de anos, com uma órbita elíptica, passava junto à Nuvem de Oort, atirando literalmente uma chuva de cometas para todas as direcções, nomeadamente para os planetas interiores do sistema solar.

Muller publicou o paper. Ao mesmo tempo dois outros investigadores postularam outras coisas, nomeadamente um Planeta X. Mas foi Némesis quem ficou na retina de todos.

Gould viu um pneu, como no artigo em que falava da Índia, onde a partir de pneus usados as crianças fazem chinelos e assim introduzia o conceito de exaptação.

E fez um artigo - depois reunido no livro citado - que queria mudar o nome de Némesis para Shiva. Porque Némesis é a deusa da destruição programada, e Shiva a da destruição aleatória. No seu mundo anti-determinista, Shiva fazia mais sentido.

A questão, claro, é saber se Raup e Sepkoski estão certos na sua análise estatística. Há quem diga que não - o que faz com tudo o que a seguir se postulou deixe de fazer sentido. E eu perguntei-lhes.

Duas vezes por email a Muller, que ainda hoje acredita que é esta a década em que se descobrirá Némesis (atentem a que descobrir uma anã branca, mesmo tão perto de nós, sem saber nada sobre a sua órbita que não seja o período, é como tentar encontrar uma agulha num palheiro - o céu é grande, já devem ter reparado).

Mas antes a Gould, caloiro que era, e da única vez que o encontrei: porque quis mudar o nome a uma coisa que não existe? E ele demonstrou porque era brilhante: "oh, I was so wrong", retorquiu.

As razões para o artigo, então, quais foram? Usar Némesis como um pneu? (Ele escrevia um artigo bem grandito por mês, talvez lhe faltasse às vezes assunto.) Mandar um abraço ao seu ex-aluno Sepkoski? (E aqui estamos na área da sociologia da ciência.) Querer acreditar que não há nada mais maravilhoso do que o sistema solar ser um sistema duplo. (E aqui estamos na área da psicologia da ciência.) Um dia gostava de estudar a resposta a estas perguntas.

Será que estava errado, afinal? Quero crer que não. Mas infelizmente acho que sim. Raup e Sepkoski nunca viram verdadeiramente provadas a sua periodicidade estatística. E Némesis ficou apenas no meio de um sorriso de um flamingo.